O que os olhos não vêem, o coração não sente. Porém, o ar de São Paulo deixou de ser transparente há muito tempo. Ele tem cor, cheiro, às vezes gosto e forma – que pode ser vista quando decolamos de avião da cidade. Hoje, ao vir para o Rio de Janeiro, fiquei triste ao ver o cobertor cinza sobre a minha cidade e, depois, comparar com o céu da metrópole vizinha.
Na minha opinião, essa é uma das piores catástrofes ambientais do país, embrulhada em um pacote bonito de pôr-do-sol avermelhado, que nos faz chorar de emoção com a vista embotada de pó e sujeira. Um repórter na TV, dia desses, exaltou o lindo fim de tarde, chamando as pessoas para saírem das suas casas e sentirem o clima, fazerem exercícios. Afe! Em seu momento de desserviço à pólis, esqueceu de pedir para trazerem os inaladores para a criançada e os idosos.
O melhor de tudo é que essa capa preta que encobre a cidade não é fruto de alguma entidade maligna que veio estabelecer o caos onde habitava a ordem, mas resultado de nossa ignorância acumulada – que comemora recordes de carros vendidos e fica besta de orgulhosa pelo fato de a capital ter quase um veículo a cada dois habitantes (e viva o ozônio em níveis estratosféricos!). Que reclama da falta de transporte público de qualidade, mas taxa de baderneiros e fanfarrões os manifestantes que resolvem se insurgir contra o aumento no preço da passagem de ônibus. Que diz que a cidade tem que encontrar meios alternativos de transporte mas, sempre que possível, acelera e não dá passagem para um ciclista.
Não temos a aplicação decente de uma política de compensação ambiental que considere o número de carros vendidos e reverta parte dos lucros dos impérios automobilísticos em recursos para o transporte público (lucros obtidos com a ajudinha de grandes subsídios públicos, diga-se de passagem). Afinal de contas, fala-se da geração de empregos com a produção industrial, mas não dos impactos silenciosos que vão ceifando vidas ao longo de anos. Ao mesmo tempo, temos uma altíssima taxas de enxofre no diesel, problema cuja solução já foi adiada diversas vezes por pressão de empresas de veículos, governos e produtoras/distribuidoras de combustível.
(Ah, mas você não está considerando os biocombustíveis, que vieram salvar o mundo da sanha poluidora do petróleo! Bem, o problema é que os impactos sociais e ambientais causados pela produção de etanol (cana) ou de biodiesel (soja, sebo de boi, girassol, mamona, pinhão-manso…) não são vistos e sentidos na capital paulista, mas sim a centenas ou milhares de quilômetros de distância, e vão do desmatamento ao trabalho escravo. Mas, aí, quem se importa, né?)
Em cidades de inverno rigoroso, há governos estrangeiros que decretam feriado quando neva muito. Em lugares escaldantes, ondas de calor muito intensas liberam os trabalhadores de seus afazeres. Com isso, resguardam a saúde de seus moradores. Os feriados religiosos fazem bem à alma dos que crêem em algo. Mas e uma pausa para o corpo? A instituição de um feriado em dias muito poluídos faria um bem enorme ao corpo dos mais de 11 milhões de moradores da cidade. Pois não é necessário acreditar no pó e em gases tóxicos, eles estão aí. Quem sabe a redução nos lucros, impostos e salários provocada por feriados forçados não mude a forma com a qual o setor empresarial, governo e sociedade encaram o problema?
A verdade é que nos acostumamos a viver dentro de um fumódromo, literalmente (quem vive em Sampa, traga o equivalente a três cigarros por dia). Quem vive em São Paulo mesmo sem consumir tabaco está mais sujeito a desenvolver câncer de pulmão do que moradores de cidades menos “desenvolvidas”.
Chamam de inversão térmica o maldito efeito que dificulta a dispersão de poluentes nessa época do ano. Os noticiários salpicam aqui e ali a inversão térmica, mas nada de falar sobre o nosso modo de vida e seu conseqüente modelo de desenvolvimento – verdadeiros réus pela nhaca. Carbono, enxofre, chumbo e uma sopa de produtos químicos expelidos principalmente por veículos. Eu sei, eu sei… isso gera empregos, roda a economia, é progresso! Mas se por um lado esse crescimento econômico dá a possibilidade de ter acesso a coisas que não tínhamos antes, por outro outro ele nos tira preciosos dias de nossa vida.
E não é a inspeção veicular que vai dar conta de resolver o problema. Vamos expulsar Fuscas, Brasílias, Variants, 147s, caminhões velhos de circulação (ou seja, eliminar o meio de locomoção da ralé), mas as propagandas que anunciam carros grandes e potentes, beberrões de gasolina e diesel na televisão continuarão povoando o imaginário e sendo adquiridos pelas classes abonadas.
O ritmo de destruição do meio foi acelerado para atender a consumidores, mas não a cidadãos. E vem cobrando um preço alto, cuja fatura será paga por aqueles que ainda são pequenos. A cidade está envolta em um bizarro chumaço escuro. É um modelo diferente de urbanidade que eu quero. Um em que não tenha que ficar angustiado por causa do pôr-do-sol estranhamente avermelhado. Trocar uma sociedade estritamente consumista, em que o “eu sou” se confunde com o que “eu tenho”, leva tempo. Talvez o meio ambiente não tenha esse tempo.
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